CNseg – 06 de Junho de 2023 – Revista de Seguros

A inteligência artificial (IA) entrou na rotina de juízes e advogados de forma irreversível. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou aumento expressivo do número de projetos de inteligência artificial no Poder Judiciário brasileiro no ano passado: 111 projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento nos tribunais com o uso da tecnologia.

Já são 53 tribunais no País que desenvolvem soluções com uso da inteligência artificial, desde instâncias estaduais até superiores, em Brasília, como aponta o relatório da segunda fase da pesquisa sobre IA nos tribunais brasileiros. O estudo “Tecnologias aplicadas à gestão de conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial” foi divulgado em dezembro passado pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, sob a orientação do ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Com base em análises quantitativa e qualitativa do uso da IA no Judiciário, o relatório identificou os tribunais – e aí estão incluídos STF, STJ, TSE, os cinco Tribunais Regionais Federais, os 23 Tribunais de Justiça e os 13 Tribunais Regionais do Trabalho, além do CNJ –, que utilizam recursos de IA em alguma ou várias atividades do dia a dia.

Há muitas tecnologias empregadas como, por exemplo, os sistemas Athos, usados no STJ para identificar e monitorar temas repetitivos em processos, e o Julia (Jurisprudência Laborada com Inteligência Artificial), empregado no TRF da 3ª Região para orientar a localização de processos suspensos por conta de decisões que ainda devam ser reformadas.

Algumas sentenças, mesmo que em menor quantidade, já são proferidas com o suporte da IA, especialmente para efeito de triagem, classificação e propostas de decisão. Destacam-se os casos mais simples ou causas repetitivas e aquelas em que há jurisprudência consolidada, além dos casos de admissibilidade de recursos. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL JÁ FAZ PARTE DA ROTINA DE TRIBUNAIS BRASILEIROS São 53 tribunais no País que desenvolvem soluções com o uso dessa tecnologia, desde instâncias estaduais a superiores, segundo o CNJ. Quem informa é a advogada Ana Frazão, especialista no tema e professora de Direito Civil, Comercial e Econômico da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Comissão de Direito Econômico da OAB Federal.

Segundo ela, um exemplo dessa faceta digital encontra-se no STF, com o sistema Victor, que auxilia na identificação de temas de repercussão geral. “A decisão algorítmica, embora consiga ser muito eficiente no processamento de dados e na acuidade, também tem suas vulnerabilidades, como os incidentes de segurança. Por exemplo: um hacker pode manipular um sistema e, consequentemente, o conteúdo de decisões judiciais, sem que sequer se perceba facilmente”, explica.

Por outro lado, ressalta a advogada, os julgamentos algorítmicos têm vantagens em relação aos dos seres humanos no que diz respeito à objetividade e à acurácia. “Mas eles não são necessariamente superiores em muitos casos. Na verdade, esses sistemas simplesmente replicam o passado no futuro. Muitas vezes, a atuação que se espera de um juiz, em determinados casos, é superar o passado e propor novas orientações”, pondera Ana.

FALTA REGULAÇÃO

A falta de um marco regulatório para o uso da IA nas esferas da Justiça é outro aspecto preocupante para essa jornada digital. A ausência de uma regulação para o tema causa insegurança, e não há garantia de utilização ética e responsável da inteligência artificial, alerta a advogada.

“Isso é muito preocupante, pois cada vez mais os sistemas de inteligência artificial têm sido utilizados para tomada de decisões que impactam a vida dos indivíduos, na medida em que estabelecem quem terá acesso a determinadas oportunidades e em que condições, quem vai exercer tais direitos e em que condições. E, além de todos os riscos e impactos, há a questão da própria obscuridade, da falta de transparência e de accountability”, alerta.

Advogados, juízes e promotores têm dificuldade em aceitar a inteligência artificial como uma substituta para os juízes, pelo menos no estágio atual de seu desenvolvimento, até porque as máquinas não têm consciência moral e responsabilidade.

“As vantagens dos julgamentos algorítmicos sobre os humanos, sem dúvida nenhuma, nem compensam nem afastam uma série de características da natureza humana que são fundamentais para essa decisão”, avalia Ana Frazão, que é organizadora do livro “Inteligência Artificial e Direito – Ética, Regulação e Responsabilidade”, juntamente com Caitlin Mulholland, professora do programa de pós-graduação em Direito Constitucional e Teoria do Estado da PUC-Rio.

Ana Frazão sugere que o melhor cenário para o futuro da IA nos tribunais é uma combinação entre o julgamento da máquina e o julgamento do homem. “Se conseguirmos atingir esse equilíbrio, sem dúvida nenhuma vamos conseguir chegar às melhores decisões sob diversos critérios”, conclui.

PROJETO-PILOTO

Juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e magistrada responsável pelo acompanhamento e monitoramento da política judiciária de combate à violência contra as mulheres, Amini Haddad Campos está à frente da complexa e relevante implantação de uma ferramenta de IA que auxiliará juízes que lidam com casos de feminicídio.

O projeto-piloto será instalado no Tribunal de Justiça do Ceará e é desenvolvido pelo CNJ com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A ferramenta busca identificar vários elementos, dados processuais e informes (legislação, precedentes, jurisprudência e notícias oficiais) que atestem a ocorrência de violência baseada na desqualificação, coisificação e apropriação do feminino, então denominada violência de gênero contra a mulher. A ferramenta de base é o Justiça 4.0, voltado para dimensionar soluções judiciais ao Poder Judiciário.

“Quanto à característica de busca inteligente, tem-se uma análise a partir de um plano simbólico hábil à orientação na perspectiva de gênero quanto aos casos de feminicídio. Mas não somente dessa modalidade de tipologia. A leitura pode também ocorrer para outros casos, para fins de diversos focos da conduta criminosa”, descreve a juíza Amini Haddad.

Para as leituras processuais, a ferramenta artificial recorre a algoritmos que buscam reconhecer a motivação e as circunstâncias que tipificam a conduta criminosa. “Isso ajudará juízes, quando da evidência de assassinatos, para verificar condutas que norteiam o feminicídio. Mas, no futuro, haverá avanço à compreensão de outros casos, como as circunstâncias da violência sexual, assédios, perseguição etc.”, diz a juíza. O projeto-piloto deverá ser integralmente implantado ainda neste ano.

Amini Haddad ressalta que a inteligência artificial já é muito usada, mas acrescenta que é fato comum as pessoas se sentirem inseguras com um panorama desconhecido. “A inteligência artificial precisa ser desmitificada. Ela é parte do nosso dia a dia, soluciona muitas intercorrências afetas à rotina, ainda que não percebamos essa dimensão da realidade. É necessário olhar para a inteligência artificial como uma aliada para a melhoria das condições de vida e tarefas que são engendradas nas instituições e ações humanas”, pondera.

Sempre na vanguarda, os Estados Unidos contam com um complexo sistema de IA que presta “consultoria” como se fosse um advogado, segundo a imprensa local. A justificativa para a vereda digital no campo judiciário americano é desafogar o trabalho de juízes que vivem diariamente às voltas com um amontoado de processos sobre suas mesas.

JUIZ-ROBÔ: UMA FAKE NEWS DE REPERCUSSÃO MUNDIAL

Muitas pessoas torceram o nariz quando, em março de 2019, a revista americana Wired publicou uma notícia “bombástica”: um jovem de 28 anos, chamado Ott Velsberg, então doutorando de Tecnologia da Informação, afirmara estar supervisionando, na época, um ousado (e não menos polêmico) projeto do Governo da Estônia, país da região báltica que é referência em digitalização social, para o uso da inteligência artificial (IA) na criação de um suposto juiz-robô.

A máquina seria capaz de (por incrível que possa parecer) proferir sentenças simples para pequenas causas que envolvessem quantias de até sete mil euros. A notícia, rica em detalhes, desencadeou uma onda de questionamentos, alguns inconformados e até irascíveis, nos meios jurídicos em todos os países.

A Revista de Seguros entrou em contato com a diretora da Divisão de Relações Públicas do Ministério da Justiça da Estônia, Maria-Elisa Tuulik, para checar a informação alardeada até hoje como indiscutível verdade por alguns dos principais veículos de imprensa do mundo inteiro.

“O artigo sobre o projeto estoniano de criar um ‘robô-juiz’ na Wired é enganoso. Não houve esse projeto nem mesmo ambição do setor público da Estônia nesse sentido. O Ministério da Justiça da Estônia não desenvolve um juiz-robô de IA para procedimentos de pequenas causas nem procedimentos judiciais gerais para substituir o juiz humano.”

Ela afirmou que ainda hoje estão procurando meios de Tecnologia da Informação e Comunicação para tornar a carga de trabalho do tribunal, incluindo a administrativa mais suportável.

“Mais precisamente, o Ministério da Justiça procura oportunidades de otimização e automatização das etapas processuais do tribunal em todos os tipos de procedimentos, incluindo decisões processuais sempre que possível”, confirmou Maria-Elisa Tuulik à reportagem.