CQCS – Notícias | 30 de maio de 2022 | Fonte: Consultor Jurídico – Por Adriano Almeida

Em quase 20 anos desde sua regulamentação, em 2003, pela Circular 232/2003 publicada pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), o seguro garantia judicial ganhou espaço no Brasil. Este ano, com a nova Circular 662/2022, o seguro chega a sua melhor regulamentação, que se destaca pela segurança jurídica.

Para se ter uma ideia do contexto da época, o mercado de resseguros no Brasil se mantinha em regime fechado, sendo apenas o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) autorizado por lei a operar como ressegurador em qualquer operação de qualquer ramo ou carteira. Dentre outros fatores, sendo o monopólio um deles, o volume de prêmio nos anos que antecederam, apesar de crescente, se manteve em patamares relativamente baixos para o potencial da modalidade.

Em junho de 2003, com a publicação da Circular 232, foram enfim divulgas informações mínimas que deveriam estar contidas nas apólices, condições gerais, condições especiais e outras disposições, um avanço para a época no que se referia ao seguro garantia em geral, uma redação bem-intencionada e que pela primeira vez registrou em pedra a nova modalidade judicial.

Apesar da previsão expressa, o desafio de desenvolver a nova modalidade era grande na medida em que o seguro garantia judicial apresentava características e necessidades diferentes dos tradicionais riscos de performance habitualmente comercializados no Brasil em decorrência da Lei das Licitações Públicas 8.666/93-94, na qual havia previsão expressa para contratação do seguro garantia de performance. Houve muita resistência, e a maioria das seguradoras do mercado somente abririam suas carteiras por volta de 2010.

Até esse ponto era muito empolgante pensar nas perspectivas do mercado sendo permeado pelo seguro garantia judicial, uma modalidade nova e promissora em um país reconhecidamente litigioso, mas parafraseando uma frase atribuída a Garrincha, se dirigindo ao seu treinador na Copa do Mundo de 1958 em um jogo contra a União Soviética: “faltava combinar com os russos”, ou melhor, com o IRB.

Encurtando a história, foram meses de debates e apresentações ao IRB para convencê-los a apoiar uma linha automática para emissão da modalidade judicial pela seguradora em prazos mais exíguos de 15 dias. A saber, para receber uma aprovação de resseguro do IRB naquela época, era necessário submeter uma oferta de resseguro em formulário específico, caso a caso, muitas vezes seguir ao Rio de Janeiro na sede do IRB para uma conversa pessoal, in loco, e dando tudo certo receber finalmente o tão esperado Fax Gerif com a confirmação da capacidade requerida, processo que demorava meses e inviabilizava a dinâmica da modalidade judicial.

Aos trancos e barrancos e com o mercado ainda fechado em resseguro o seguro garantia de forma geral foi se desenvolvendo, com uma importante contribuição do segmento judicial. Nos anos que seguiram até a publicação da Circular Susep 477 em 2013, foram períodos com resultados realmente expressivos no segmento com um crescimento do volume de prêmio entre 2005 e 2013 na ordem de quase 1000%.

Estima-se que em 2013, 90% da geração de prêmio no ramo seguro garantia estava relacionado a emissão de seguros na modalidade judicial, proporção que se manteve nos anos seguintes.

Nesse período, leis importantes foram criadas, como por exemplo a importante lei que deu ensejo a reforma do Código de Processo Civil (CPC) brasileiro em 2009, e passaram a prever o seguro garantia judicial como modalidade apta a garantia do juízo. Além do CPC, imprescindível lembrar o trabalho realizado em 2009 pelo Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), que com muita habilidade e apoio do mercado segurador construíram a quatro mãos a primeira portaria publicada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, cuja finalidade era regulamentar no âmbito da PGFN a aceitação de apólices de seguro garantia judicial para garantir débitos inscritos em dívida ativa da União, um marco que deu ainda mais combustível para o segmento.

Em 2013, e puxado por tantas novidades, leis, ordenamentos, projetos de infraestrutura como os PACs (Plano de Aceleração Econômico) lançados em 2009-2016, descoberta do pré-sal, preparação para a Copa do mundo que ocorreria no Brasil em 2014 e na sequência os Jogos Olímpicos em 2016, e fundamentalmente pela tração que ganhou o seguro garantia judicial no empresariado brasileiro e no Poder Judiciário, a Susep editou e publicou a Circular 477/2013.

Nesse ponto da história, como curiosidade dos fatos, a redação da Circular 477/2013 era confusa e extensa. Com vários capítulos e regras para as seguradoras registrarem suas notas técnicas, distinções foram feitas entre os produtos para o setor público e privado, e a Susep deixou de contabilizar de forma separada cada modalidade, o que dava uma excelente visibilidade aos operadores deste mercado, acreditando estar simplificando entre os ramos 0775 e 0776. Mas o mais importante ela não atacou: como melhor traduzir, simplificar e apresentar o produto aos segurados.

De todo modo, olhando para o copo meio cheio, a circular trouxe no Capítulo II, Modalidades VI, VII e VIII, uma redação bem ampla sobre o seguro garantia judicial, seguro garantia judicial para execuções fiscais e seguro garantia judicial para parcelamentos fiscais, bem mais completa do que o singelo texto de 2003, e que foi importante naquele momento tendo em vista as diversas portarias das procuradorias federal e estaduais que estavam sendo editadas e publicadas a todo o momento. Inevitavelmente por tantos detalhes, a redação da Circular 477/2013 dava o norte e o equilíbrio para que seguradoras e segurados se entendessem em suas diversas aplicações.

Os anos que se seguiram foram realmente memoráveis sob o ponto de vista de arrecadação de prêmio pelas seguradoras e permeabilidade dos produtos, seja no Judiciário seja em outras naturezas, risco de petróleo, imobiliário, financeiras, muitas novas possibilidades se abriram e o resultado foi um crescimento entre 2003 e 2021 de 308%, passando de R$ 1 bilhão para R$ 3 bilhões o volume de prêmio emitido, mesmo considerados os dois últimos anos afetados pela pandemia do Covid-19, período que o mercado se manteve estável.

Há no Direito um brocardo que diz: dê-me o fato e dar-te-ei o direito. Esse é um fenômeno jurídico conhecido como o Direito entre Fato e Norma, no qual, por meio de um processo de conhecimento da realidade, nasce e aplica-se a norma adequada. Pelo conhecimento adquirido em decorrência das mudanças sociais, culturais etc., entende-se a necessidade conhecendo os fatos, e dele deriva-se a necessidade de nova norma ou sua adequação. Dito isso, o que se percebeu foi que os ajustes promovidos pela Susep nas circulares anteriores tiveram intenções positivas de regular e atualizar a norma, os anseios sociais e partes relacionadas de um ecossistema em desenvolvimento e amadurecimento.

E assim chegamos em 2022 com a edição e publicação da Nova Circular 662/2022 para o seguro garantia, em vigor desde 2 de maio.

Diferentemente das circulares anteriores, a nova Circular 662/2022 é surpreendente por sua simplicidade, objetividade e liberdade. São 37 artigos, somente, que se preocuparam mais em como dar autonomia e liberdade às seguradoras do que regular em detalhes a forma pela qual essas devem atuar e padronizar seus produtos.

A nova circular traduz as necessidades de um mercado maduro e ávido por liberdade de atuação. A nova circular se manifesta por seguradoras com autonomia na redação das apólices e aprovação de novos produtos; clausulados mais simples e aderentes a cada caso concreto; apólices enxutas com duas ou três páginas e retirada das condições gerais em decorrência da extinção da padronização do produto.

Olhando para o passado e sugerindo projeções futuras, concluo com o pensamento no sentido de que a liberdade dada pela Circular 662/2022 ao mercado segurador dá a largada a um novo ciclo promissor e de crescimento para o mercado de seguro garantia, com novas possibilidades de coberturas, diferentes possibilidades de contra garantias, maior acesso ao mercado tomador, a característica de comoddities tende a mudar pela diferenciação de novos produtos não padronizados, e, por fim, trará muito mais segurança jurídica e clareza à principal parte nesta relação, os segurados.