Revista Cobertura – Por Luís Poças – Notícias | 21 de julho de 2022 | Fonte: Consultor Jurídico

1. Introdução
Embora constitua, desde a origem do contrato de seguro, uma patologia tipicamente endêmica do mesmo, a fraude em seguros permanece um fenômeno relativamente pouco estudado, sobretudo considerando que apela transversalmente a abordagens de natureza jurídica, econômica, técnica e operacional.

Situada nos antípodas da máxima boa fé exigida pelo contrato de seguro, a fraude é um efeito perverso da ampla margem que este tipo contratual concede ao estado subjetivo — mormente, à intenção — do tomador do seguro e do segurado. Ora, quando a fraude repousa apenas nesse estado subjetivo, sem traços de evidências materiais, as dificuldades de detecção agigantam-se. Como na imagem de um iceberg, o conhecimento da fraude em seguros limita-se à parte emersa, só permitindo, quanto ao mais, exercícios de cálculo especulativos.

Pelo nosso lado, tivemos oportunidade de assumir o tema como objeto de estudo, no plano jurídico, quer relativamente à fraude na celebração do contrato de seguro (declaração inicial do risco), quer à verificada na sua execução (participação do sinistro). É agora o momento de regressarmos ao tema, nesta última vertente, mas numa perspectiva simultaneamente mais abrangente e sintética.

2. A noção de fraude
Situando-nos no terreno jurídico (e atendo-nos ao ordenamento jurídico português), o termo fraude pode convocar diferentes acepções. Em qualquer delas, e na linha da tradição romana, a fraude (fraus) designa um prejuízo doloso, adicionando à intenção lesiva, a efetiva produção de um dano.

Neste contexto, e no plano criminal, o termo apela ao tipo penal de burla, simples ou qualificada (respectivamente, artigos 217.º e 218.º do Código Penal), ou, de forma mais direcionada, ao de burla relativa a seguros (artigo 219.º do mesmo código).

Já no domínio do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, o termo coexiste com uma expressão sinônima: a de dolo com o propósito de obter uma vantagem. Está agora em causa um dolo agravado, mais concretamente, o estado subjetivo — ou grau de culpa — mais censurável que pode qualificar o comportamento do tomador do seguro ou do segurado.

Por seu turno, no quadro do Direito institucional dos seguros, podemos encontrar uma noção com conteúdo operatório e relevância prática na alínea f) do artigo 3º da Norma Regulamentar da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões nº 4/2022-R, de 31/05, segundo a qual a fraude nos seguros consiste na prática de atos ou omissões intencionais, ainda que sob a forma tentada, com vista à obtenção de vantagem ilícita para si ou para terceiro, no âmbito da celebração ou da execução de contratos de seguro ou da subscrição de operações de capitalização, designadamente os que visem uma cobertura ou pagamento indevido.

Esta última noção, que nos orientará no presente texto, está, de resto, alinhada com aquelas com que nos deparamos na generalidade dos ordenamentos.

3. Tipologias de atuação fraudulenta
São várias as tipologias que podem traçar-se a respeito da fraude em seguros. Relativamente ao momento da prática da fraude, distinguimos já acima a fraude na formação do contrato da fraude na execução do contrato, fixando-se o presente texto nesta última vertente.

Quanto à reação preventivo-repressiva do Direito, podemos também distinguir a cominação penal, que pune criminalmente a conduta do agente, da civil, que afeta as obrigações fundadas no contrato, determinando a resolubilidade dos vínculos negociais assumidos e a eventual emergência de um dever de indenizar.

Relativamente à intensidade da atuação fraudulenta, cumpre distinguir a fraude ligeira ou de oportunidade — relativa ao exagero dos danos reportados em sede de participação de um sinistro real —, da fraude severa ou grave, que se estende a situações de simulação do sinistro (por vezes, com a cumplicidade de peritos, médicos, prestadores de serviços diversos, etc.) ou até de sinistro deliberadamente provocado pelo segurado.

Uma outra classificação atende ainda ao caráter pontual ou reiterado da atuação do segurado defraudador. No primeiro caso, o comportamento fraudulento pode ser frequentemente explicado à luz da teoria do triângulo da fraude. Segundo esta teoria, desenvolvida por Cressey, a fraude é condicionada pela concorrência de três dimensões de verificação cumulativa: a pressão (decorrente de dificuldades financeiras do defraudador, que constituem o cerne da motivação para agir), a oportunidade (propiciada por circunstâncias facilitadoras) e a racionalização (processo cognitivo que configura o ato fraudulento como justificável).

Já no segundo caso, a fraude corresponde a um comportamento recorrente, a um modo de vida à margem da lei, suportado, por vezes, em autênticas redes criminosas (abrangendo, por exemplo, no caso do seguro automóvel, o envolvimento de oficinas, reboques, peritos, etc.). Nestas situações de fraude sistemática ligada ao crime organizado — com exemplos amplamente divulgados na comunicação social — a eficácia da luta antifraude passa, em grande medida, por um combate concertado entre vários seguradores, designadamente, mediante a partilha de informação relevante.

4. Características da fraude na execução do contrato de seguro
A fraude praticada na vigência do contrato de seguro surge, em regra, ligada à ocorrência e à participação do sinistro, e, por essa via, associada ao propósito do defraudador de receber do segurador uma indenização total ou parcialmente indevida.

Nuns casos, verifica-se a provocação deliberada de um sinistro: por exemplo, um incêndio em bens sobreavaliados; ou a automutilação, aparentemente acidental, tendo em vista o recebimento de um capital por acidentes pessoais.

Noutras situações, recorre-se à encenação de um sinistro simulado: por exemplo, um alegado furto de objetos de valor (inexistentes ou previamente postos a salvo) num apartamento; ou a falsificação de uma fatura de intervenção cirúrgica, suportando a reclamação, ao segurador, do respectivo reembolso.

Noutros casos ainda, o defraudador aproveita a ocorrência de um sinistro real para exagerar os danos reclamados: por exemplo, num furto por arrombamento, invoca a subtração de bens que, na verdade, não possuía sequer; ou, num choque automóvel real, reclama danos da viatura que eram preexistentes.

Os citados exemplos denotam, entre os seus traços comuns, a já mencionada relevância do estado subjetivo do segurado. Apelando ao exemplo do chamado “condutor kamikaze“, a colisão frontal de um veículo automóvel contra uma árvore poderá ser um acidente fortuito, devido a distração do condutor e coberto pelo seguro de danos próprios, ou, diversamente, resultar de um comportamento intencional, caso em que se tratará de uma fraude. À mesma factualidade objetiva — a colisão — poderão, portanto, corresponder duas qualificações distintas: uma lícita, contratualmente enquadrada entre as garantias do seguro, e outra ilícita, de natureza fraudulenta e, portanto, juridicamente inadmissível.

Da relevância do estado subjetivo decorre um outro traço comum aos exemplos dados: a dificuldade de detecção e prova da fraude – a inviabilizar uma estimativa séria do impacto econômico da fraude no mercado segurador — sem prejuízo da progressiva sofisticação e eficácia dos meios de prevenção e combate à fraude desenvolvidos pelos seguradores e pelas autoridades policiais. Isto mesmo é ilustrado pelas situações fraude frequentemente noticiadas pela comunicação social.

5. O paradoxo econômico da fraude em seguros
São diversas as vertentes que propiciam uma abordagem econômica ao fenômeno da fraude em seguros. Uma delas incide sobre a forma como o desenho contratual pode influenciar o comportamento fraudulento. Nesta perspectiva, vários são os recursos que o contrato de seguro disponibiliza no sentido de repartir o risco com o tomador do seguro, desincentivando a fraude. Entre eles, o formato bonus-malus e o recurso a franquias têm revelado a sua eficácia.

Mas é noutra dimensão que uma análise econômica à fraude evidencia um autêntico paradoxo. Com efeito, e não obstante a gravidade objetiva dos comportamentos que comporta e da inerente severidade das sanções penais que lhes correspondem, a fraude em seguros beneficia de uma estranha tolerância da consciência social e até, por vezes, do poder judicial. Ora, este clima de benevolência pode ser explicado à luz do chamado síndroma de Robin Hood, nos termos do qual a coletividade reprova, como imoral, o prejuízo causado a uma pessoa, mas, paradoxalmente, não condena o prejuízo causado a uma organização, mesmo tendo consciência da ilicitude do comportamento em causa.

Porém, este sentir social descura as bases mutualistas — logo, solidarísticas e de autêntica justiça distributiva — da atividade seguradora. Ignora, portanto, que é a massa dos prêmios da mutualidade dos segurados que suporta, em grande medida, a sinistralidade verificada e que, portanto, o sinistro fraudulento do segurado individual onera, na verdade, não tanto o segurador (gestor da mutualidade), mas sobretudo a coletividade segura.

Em síntese, os custos da fraude são efetivamente suportados pelos consumidores de seguros, de tal forma que a prevenção e a eficaz detecção da fraude se repercutem, não tanto sobre os lucros do segurador, mas, sobretudo, na redução média dos prêmios cobrados . Ademais, só uma eficaz atividade antifraude contribui para a solvência do segurador, protegendo, assim, globalmente, a mutualidade de segurados.

Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.