Folha de São Paulo – 30.set.2022 às 13h58 – Idiana Tomazelli – BRASÍLIA
A proposta do Tesouro Nacional para um novo teto de gastos é mais complexa que o atual desenho do limite de despesas, mas traz mudanças que vão na direção correta ao dar mais flexibilidade à regra fiscal, avaliam economistas.
Como antecipou a Folha, o órgão do Ministério da Economia trabalha em uma reformulação do teto de gastos que autoriza o crescimento real das despesas conforme o nível e a trajetória da dívida pública, a uma taxa a ser definida a cada dois anos. A regra também concede um bônus de ampliação dos gastos em caso de melhora do superávit nas contas públicas.
Hoje, o limite de despesas é corrigido apenas pela inflação, o que torna mais simples a compreensão de seu funcionamento, mas, na ausência de revisão de outras despesas, acaba comprimindo o espaço para gastos como investimentos.
Nos últimos anos, o teto de gastos passou por sucessivas alterações para acomodar gastos extras com benefícios sociais. A iniciativa mais recente ocorreu às vésperas da campanha eleitoral, para instaurar um “estado de emergência” e abrir caminho ao Auxílio Brasil turbinado de R$ 600 e benefícios a caminhoneiros e taxistas, grupos que integram a base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Sem os mesmos subterfúgios, o Orçamento de 2023 foi enviado ao Congresso Nacional sem recursos para assegurar a continuidade do Auxílio Brasil de R$ 600 e com um amplo corte em áreas sociais. Para evitar um apagão, economistas que assessoram os principais candidatos à Presidência da República têm defendido mudanças no teto.
A proposta do Tesouro vem sendo desenvolvida pelos técnicos como forma de contribuir para essa discussão. Apesar disso, um texto oficial deve ser divulgado apenas em novembro. “Independentemente de quem for o vencedor da eleição, a gente quer contribuir com o debate. Esse é o papel que cabe ao Tesouro”, disse o secretário do órgão, Paulo Valle, em entrevista coletiva nesta quinta-feira (29).
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Como o Tesouro é um órgão de Estado, há um cuidado nos bastidores para evitar que a proposta seja contaminada por divergências eleitorais. A postura é de colaboração diante de eventual demonstração de interesse de interlocutores do presidente eleito.
Pelo desenho preliminar, o teto de gastos poderia ter um crescimento real de 0% a 1%, caso o endividamento esteja aumentando. Mas o ganho poderia ser maior, de 0,5% a 2%, se a trajetória da dívida for de queda.
O percentual exato a ser aplicado dependeria do nível de endividamento. Além disso, o governo poderia ter um bônus de 0,5 ponto porcentual caso o resultado primário (diferença entre receitas e despesas) seja positivo e também mostre melhora com o passar dos anos.
No primeiro ano de aplicação da nova regra (2024, na previsão do Tesouro), seria incluído um adicional único de 2% no crescimento do limite acima da inflação, para desafogar despesas hoje muito comprimidas e também ampliar o potencial de aceitação política da nova regra.
Um dos formuladores do teto de gastos original, o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e colunista da Folha, avalia que a nova regra proposta pelo Tesouro é boa. Segundo ele, ela traz elementos que têm sido defendidos nos debates atuais sobre regras fiscais, com adaptações para a realidade brasileira.
“O Tesouro usa o controle da despesa tendo a dívida como um farol. Resolveram o problema do resultado primário, que na forma atual gera uma série de problemas. Agora usam o primário como estímulo, mas não como meta a ser cumprida, ou passível de punição”, diz Mendes.
Outro ponto positivo, segundo ele, é a escolha de um indicador de endividamento menos sujeito a manipulações em busca de melhora por meio da política de juros do Banco Central ou da venda de reservas internacionais (ativos mantidos pelo BC que funcionam como um seguro contra choques externos).
O indicador escolhido pelo Tesouro é a DLGG (dívida líquida do governo geral). Ela inclui governo federal, estados e municípios –mas, diferentemente de outros indicadores mais conhecidos (como a dívida bruta ou a dívida líquida do setor público, a DLSP), exclui dívidas de estatais e títulos públicos usados pelo BC para fazer sua política de juros.
O economista alerta, porém, que o desempenho efetivo da nova regra no controle do endividamento depende dos parâmetros adotados e do nível de compromisso do governo com seu cumprimento.
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“Nenhuma regra fiscal, por mais bacana que seja, sobrevive a um contexto político adverso. Então, tudo vai depender do que o novo governo vai negociar em termos fiscais”, diz. “A regra só faz sentido no contexto de uma negociação política em que você efetivamente aplique essa regra e dê garantias de que ela vai ser factível, vai ser cumprida. E para isso, precisa realizar uma série de reformas, rever emendas parlamentares”, acrescenta.
Há uma preocupação também sobre a capacidade de os parâmetros escolhidos pelo Tesouro Nacional assegurarem uma trajetória saudável para a dívida pública no futuro. Esse é um ponto de dúvida para outros economistas ouvidos reservadamente pela Folha. Além disso, há o risco de que, numa eventual negociação com o Congresso Nacional, as bandas de crescimento real da despesa sejam ainda mais benevolentes para comportar a pressão de gastos.
O Tesouro, por sua vez, já trabalha para ampliar suas simulações de despesas e endividamento no futuro caso os parâmetros sejam alterados, para mostrar suas consequências –benignas ou não. Técnicos do órgão têm apresentado a proposta a pessoas de fora do governo justamente com a intenção de colher impressões e possíveis sugestões de aprimoramento. Integrantes do Banco Central e do FMI (Fundo Monetário Internacional) já tiveram contato com os detalhes.
O economista Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em contas públicas, tem uma visão mais crítica da proposta. Para ele, o modelo ficou confuso ao misturar uma âncora fiscal (endividamento) com dois tipos de regras operacionais (controle de gastos e resultado primário). “É uma tentativa de reduzir o grau de liberdade da gestão fiscal, mas que no fim das contas vai comprometer a coerência do modelo”, avalia.
Além disso, Ribeiro vê a proposta desalinhada à discussão de simplificação das regras fiscais. “Há vários tipos de combinação, a operacionalidade fica confusa”, diz.
Na avaliação do analista, o Tesouro acerta ao olhar para a trajetória de endividamento, mas deveria colocá-la como um objetivo a ser perseguido e usar apenas uma regra operacional para atingi-lo –nesse caso, o resultado primário, que relaciona despesas e receitas, mas sem fixar um limite para os gastos.
“É possível definir uma meta de resultado primário super-rígida mesmo com a arrecadação subindo”, argumenta Ribeiro, que defende também um modelo de revisão periódica de despesas.
A economista Vilma Pinto, diretora da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado, avalia que a maior flexibilidade da regra proposta pelo Tesouro é um ponto positivo, já que a rigidez da âncora atual foi a raiz de grande parte das investidas contra o teto de gastos.
A ideia de trazer uma visão de médio prazo, com definição do crescimento das despesas para os dois anos seguintes, também foi bem recebida pela economista, assim como o uso da DLGG como referência de endividamento. No entanto, ela também manifesta dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública.
“A regra em si não entra no mérito de a dívida ser ou não sustentável. Ela só define limites fixos para definir o percentual de crescimento das despesas”, diz Pinto. Ela também cita a complexidade do modelo desenhado pelo Tesouro como uma desvantagem em relação à regra atual.