Valor Econômico – Por Alexandre Nascimento – 16/08/2021 | 02h00

Nos últimos anos, o desenvolvimento de veículos com níveis elevados de automação se intensificou. Através de sofisticações incrementais, os pilotos automáticos dos veículos estão ganhando novas funcionalidades. O objetivo das empresas é atingir um estágio de desenvolvimento em que um carro seja suficientemente autônomo para conduzir passageiros sem a necessidade de um motorista. 

Desde 2018, a empresa Waymo, que nasceu como um projeto de carros autônomos do Google, já oferece em Phoenix, nos Estados Unidos, o serviço de transporte particular de passageiros sem a presença de um motorista. De fato, a viabilidade desse nível de autonomia foi comprovado em 2007, numa competição promovida pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA, na sigla em inglês) dos EUA, quando os carros desenvolvidos pelos times das universidades americanas Carnegie Mellon, Stanford e Virginia Tech percorreram um trajeto urbano de 96 quilômetros respeitando todas as regras de trânsito sem nenhuma intervenção humana e nem acidentes.

Apesar de ainda existirem desafios tecnológicos a serem superados pela indústria automotiva para o amplo domínio dessa tecnologia, talvez os maiores desafios sejam de natureza não tecnológica, decorrentes da forma como alguns pilares da nossa sociedade estão organizados. Tais desafios podem dificultar, limitar ou restringir como lidar com potenciais situações que podem ocorrer com o uso dos carros autônomos.

Atualmente, no caso de uma colisão ou um atropelamento, a responsabilidade recai sobre o motorista. Mas e se não houver motorista? A responsabilidade seria do proprietário do veículo, do fabricante do veículo ou do criador da tecnologia inteligente que permite tal nível de automação? 

Com o progresso da tecnologia, espera-se que um carro autônomo na iminência de uma colisão tenha a capacidade de evitá-la tomando ações de forma antecipada ou, pelo menos, influenciar nos desdobramentos para reduzir os prejuízos materiais e riscos à vida. Como tais decisões a serem tomadas pelos carros têm natureza ética, muito se tem discutido a respeito desse assunto. Algumas dessas discussões giram em torno de situações hipotéticas fundadas em dilemas morais que a inteligência artificial embarcada nos carros autônomos terá de lidar. Por exemplo, o carro deve proteger a vida de seus integrantes ou dos pedestres em uma situação em que seja necessário fazer uma escolha? Ou ainda, o carro deve poupar a vida de um pedestre idoso ou a de um jovem numa situação em que seria impossível evitar o atropelamento de ambos?

Essa é uma questão que tem sido investigada há algum tempo. Um estudo publicado na revista científica Nature analisou a opinião de 2,3 milhões de pessoas ao redor do mundo e identificou que os princípios morais que guiam a opinião dos respondentes varia de acordo com os países. Os respondentes de nações mais desenvolvidas, por exemplo, têm uma probabilidade menor (em relação aos demais países) de optar por salvar a vida de um pedestre que fez uma travessia desrespeitando uma lei de trânsito. Por outro lado, em um dilema entre poupar a vida de um indivíduo ou a de um grupo de pessoas, as diferenças se reduzem, com a maioria escolhendo poupar o maior número de vidas possível. 

Assim, um veículo com uma tecnologia avançada o suficiente para atuar reduzindo o potencial número de fatalidades decorrentes de um atropelamento ou colisão teria uma aceitação mais universal.Apesar disso, mesmo uma regra que poupasse o maior número possível de vidas traria potencialmente muitos desafios. A título de exemplo, os idosos são mais suscetíveis à morte por atropelamento do que os jovens, dentre outras razões, pela fragilidade e pelas complicações decorrentes de uma recuperação mais difícil. Assim, numa situação em que a escolha fosse entre atropelar um jovem ou um idoso, um carro autônomo regido por essa regra moral optaria por atropelar o jovem, visto que a probabilidade do jovem morrer é menor. 

Talvez um dos maiores desafios que teremos diante de carros com capacidade de interferir nos desdobramentos de uma colisão ou atropelamento seja o fato de que um acidente é conceituado  como um caso fortuito. Ou seja, um acidente tem uma relação com a perda de controle sobre os desdobramentos cujos efeitos não eram possíveis de serem evitados ou previstos. No entanto, quando um carro toma deliberadamente a decisão de poupar uma vida em detrimento de outras, não se trata mais de um acidente, mas sim de uma decisão tomada “racionalmente”. Nesse caso, quais seriam os desdobramentos jurídicos? E como ficaria a cobertura dos seguros, visto que não se trata mais de um acidente? Haveria um aumento no valor do seguro de vida e dos planos de saúde dos jovens devido ao novo perfil de risco.

A sociedade, bem como suas instituições e regras se moldaram num paradigma de mundo em que as pessoas controlam as máquinas e, portanto, são os responsáveis pelas consequências do uso delas. No entanto, estamos caminhando num ritmo acelerado para um novo paradigma, em que  os bens terão  inteligência e poder de tomada de decisão de forma autônoma. Essa quebra de paradigma exigirá uma profunda reavaliação das regras, das instituições, da organização de nossa sociedade e provocará mudanças mais significativas do que podemos imaginar.