Revista Cobertura – Por – 22/02/2022 as 15:36
A votação do Supremo Tribunal de Justiça sobre a cobertura dos planos de saúde, que acontece nesta quarta-feira (23), mobiliza pacientes e suas famílias que se sentem temerosos com a decisão, e lutam por direito à saúde
“Apelo, como mãe, para que os ministros olhem para os nossos filhos como seres humanos que são, que necessitam de tratamento para que sejam independentes, e não uma briga de dividendos de empresas milionárias contra famílias que berram por respeito.”
Esse é o apelo da Michelle, mãe de uma criança autista, ao Superior Tribunal de Justiça. Os ministros do STJ retomam nesta quarta-feira (23) o julgamento sobre a cobertura dos procedimentos e tratamentos pelos planos de saúde no Brasil. Se aprovado, na prática, procedimentos que não estão na lista da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) podem não ser cobertos pelos planos.
O chamado “rol da ANS” define quais procedimentos devem ser cobertos obrigatoriamente pelas operadoras, o que muitas vezes envolve medicamentos para doenças raras, patologias graves, paralisia cerebral, tratamentos para autismo, por exemplo.
Para muitas famílias que possuem planos de saúde, como é o caso do Enzo, de 9 anos, filho da Michelle Carvalho, 39 anos, que conseguiram acesso ao tratamento através de liminar na justiça – porque receberam a alegação que a terapia não fazia parte do rol de procedimentos obrigatórios da (ANS), negando assim o custeio da intervenção – essa decisão afeta diretamente a saúde e a vida dos envolvidos. Michelle continua:
“Uma interrupção de tratamento, de forma não planejada, assim como uma mudança de equipe da qual o meu filho não se identifique afetivamente pode ser muito prejudicial no desenvolvimento dele. Toda a intervenção é um processo longo, diário, de muito trabalho, mas infelizmente, ignorada e/ou subestimada pelos planos de saúde, que liberam horas mínimas terapêuticas e tentam, a todo custo, se esquivar de assumir o que lhes é responsabilidade. Que as pessoas autistas tenham chance e oportunidades de acesso a algo tão importante e fundamental para sua vida em sociedade.”
O apelo por acesso e direito à saúde se une ao da mãe dos gêmeos autistas Nícolas e Vitor, de 14 anos. Fabiana Rodrigues tem 45 anos, é professora e se sente indignada com a possível negativa proferida pela turma de ministros:
“Como é possível, em um país como o nosso, em pleno século XXI, nos depararmos com pessoas que deveriam ser nossos representantes no cumprimento das leis, e deveriam ser os principais exemplos no respeito à vida, terem a coragem de se posicionarem contra a vida das pessoas com deficiência? Contra as pessoas vulneráveis? O desamparo a uma criança com deficiência não descuida e desampara apenas a criança ou a pessoa com deficiência, e sim, toda a família.”
Depois de uma longa trajetória, vendo os filhos sofrerem por não conseguirem se comunicar, passando por muito sofrimento, em um momento de desespero, Fabiane conheceu a intervenção em ABA – Applied Beharvior Analysis – a intervenção comportamental com reconhecimento científico, para pessoas com autismo, capaz de apoiar as pessoas em seus desenvolvimentos.
“Meus filhos só passaram a ter esse atendimento pela força da Lei. Eles foram resgatados de uma vida condenada, através da intervenção em ABA. Imaginar a possibilidade deles perderem um direito adquirido que lhes trouxe qualidade de vida é imaginar meus filhos sendo julgados e lançados em um ‘calabouço’”.
Além das mudanças percebidas pelas famílias dos pacientes, os benefícios alcançados por meio da ABA também são constatados pela Mestre, Doutoranda e pesquisadora da PUC-SP e Coordenadora de Pesquisa do IPC – Instituição sem fins lucrativos que promove a pesquisa em ABA, Renata Michel. Ela diz que, enquanto os tratamentos convencionais ainda não demonstram quaisquer benefícios, a ABA constata a melhora dos pacientes “que inclui desde o desenvolvimento da linguagem, habilidades de independência básicas até o ensino de habilidades acadêmicas e a capacitação dos indivíduos para a inserção no mercado de trabalho”, comenta.
A Coordenadora de Pesquisa do IPC, Renata Michel, lamenta:
“Enquanto diversos outros países estabelecem e chancelam a ABA como ‘padrão ouro’ no tratamento do TEA, a depender da decisão tomada pelo STJ nesta quarta-feira (23), podemos ter um retrocesso no entendimento do judiciário. A não presença da ABA no rol da ANS não significa que tal agência negue a eficácia da ABA, mas tão somente que ainda não a incluiu em seu rol, possivelmente por razões políticas quaisquer não pautadas na apreciação da ciência.”
Tratamentos ameaçados pela decisão do STJ
Nos últimos anos houve uma crescente demanda de processos ajuizados contra os planos de saúde. Com isso, surgiram diversas tentativas de impedir a possibilidade de ingresso com essas ações judiciais. A advogada especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra e especializanda em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP – Ribeirão Preto, Débora Lubke Carneiro, explica:
“Surgiu um projeto de lei que previa a não aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, o que deixaria os consumidores desamparados nesses casos, autorizava o reajuste de mensalidade dos idosos, e assim por diante. Entretanto, houve uma grande comoção popular e grande objeção das instituições que defendem os consumidores e esse projeto não foi pra frente.”
Em dezembro de 2019 a 4ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) ao julgar um caso envolvendo o direito de uma paciente a uma cirurgia que utilizava técnica não alistada no rol da ANS, abriu a oportunidade para que alguns planos de saúde, entidades de defesa dos consumidores se habilitassem como Amicus Curiae (amigo da Corte) e colaborassem com informações sobre o assunto em debate. Assim como relata Dra. Débora Lubke Carneiro:
“Na época, a 4ª Turma proferiu uma decisão entendendo que o rol da ANS é taxativo e, portanto, os planos de saúde não possuem qualquer obrigatoriedade de fornecer procedimentos que ali não estejam alistados. Vale ressaltar que a decisão não possui caráter vinculativo, ou seja, ela não se aplica a todos os casos de maneira geral. Apenas representa o entendimento de uma única Turma do STJ.
A 3ª Turma da mesma Corte não compartilha do mesmo entendimento e continua proferindo decisões que garantem o direito dos pacientes, e proíbe essa conduta abusiva por parte dos planos de saúde. Por ora, isso significa que uma ação judicial que é distribuída na 4ª Turma terá uma decisão negativa ao paciente, e seu tratamento será imediatamente interrompido. Por outro lado, um processo distribuído à 3ª Turma tem tido uma decisão favorável ao paciente e esse permanecerá recebendo o tratamento pelo plano de saúde. Da decisão de qualquer uma das duas Turmas, cabe o Embargos de Divergência que é julgado pela 2ª Seção do STJ (que abrange a Terceira e a Quarta Turma do STJ) com o intuito de uniformizar o entendimento acerca do assunto.”
O julgamento desse assunto já foi iniciado com o voto do Relator (Ministro Luis Felipe Salomão da 4ª Turma do STJ) que entendeu pela taxatividade do Rol da ANS. E caso o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) seja considerado taxativo, o consumidor terá que realizar o pagamento de forma particular ou, ainda, aguardar a assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), o que ensejaria na sobrecarga no atendimento da rede pública, afetando a vida de milhões de brasileiros:
“Caso o entendimento da 4ª Turma se consolide no STJ, consumidores usuários de plano de saúde ficarão à mercê do rol da ANS e não terão acesso aos tratamentos de saúde de qualidade que possuem comprovação científica ou que sejam eficazes ao seu problema de saúde. Essa decisão poderá impactar ainda mais o Sistema Único de Saúde, visto que os pacientes não terão mais direito à continuidade do seu tratamento de saúde especializado pelos planos de saúde causando o aumento da judicialização em face dos entes federativos,” finaliza Débora Lubke.
O que diz o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)
Em Nota, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) acompanha este debate há anos, e sustenta em memoriais enviados aos ministros do STJ que o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Planos de Saúde e a lei de criação da ANS são uníssonos e complementares na classificação do rol como uma referência básica. A Lei de Planos de Saúde afirma expressamente que todos os tratamentos das doenças incluídas na CID (Classificação Internacional de Doenças) da OMS (Organização Mundial de Saúde) são de cobertura obrigatória pelas operadoras.
“O terrorismo econômico é o único argumento das operadoras para defender a mudança no caráter do rol. A lista da ANS é interpretada de maneira ampla pela Justiça há mais de vinte anos, e isso nunca significou uma ameaça real para os lucros das empresas – que, aliás, seguem crescendo ano a ano”, explica Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec.
“Para os consumidores, que são sempre o lado mais vulnerável nessa relação, uma mudança no caráter do rol significaria uma perda imensurável e o risco de não poder acessar um tratamento no momento de maior necessidade. O Idec espera que os ministros levem esse impacto em conta em seus votos”, completa.