Notícias | 26 de junho de 2023 | Fonte: Folha de S. Paulo
Levantamento da Amil achou mais de 200 casos de anúncios irregulares nas redes
Operadoras de planos de saúde iniciaram um movimento para pressionar as gigantes de tecnologia na tentativa de derrubar conteúdos publicados na internet ligados a fraudes com reembolsos médicos.
Na semana passada, representantes da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) procuraram executivos do Google para apresentar a preocupação do setor com o avanço no volume de golpes contra operadoras, que disparou nos últimos anos e chega à casa dos R$ 3,5 bilhões, segundo estimativas da entidade.
O alerta também deve ser levado à Meta, dona de serviços como Instagram e Facebook.
Nos últimos meses, a Abramge reuniu centenas de links da busca do Google e postagens de redes sociais com propagandas que insinuam possíveis fraudes. Na lista aparecem conteúdos que orientam clínicas e pacientes a burlar as regras dos planos.
Segundo a associação, uma das principais irregularidades envolve procedimentos estéticos, como aplicação de botox, registrados como se fossem consultas médicas ou outro tratamento coberto pelo plano.
“É possível ver publicidades que falam que 100% de um tratamento estético será reembolsado pelo convênio. Mas o procedimento estético não está dentro do rol de reembolso”, diz Simone Cesena, diretora de marketing da SulAmérica.
A Amil afirma que suas ferramentas de inteligência contra ameaças cibernéticas identificaram, nos últimos seis meses, 231 casos de fraudes como perfil falso em rede social e uso fraudulento de marca, número 86% maior do que o registrado no semestre anterior.
Além de tentar sensibilizar as big techs, o setor já tem levado os casos à Justiça. A Amil afirma que tem hoje cerca de 20 ações judiciais em andamento contra clínicas que estão usando sua marca indevidamente em publicações de redes sociais. Segundo a empresa, as clínicas divulgam a logomarca da Amil se passando por rede credenciada para atrair os beneficiários e depois os induzem a fazer uma prática que ficou conhecida como reembolso assistido, o que é fraude, de acordo com as operadoras.
“Em sentenças recentes favoráveis à Amil, os ofensores foram condenados a remover e interromper a utilização da marca Amil em seus sites e mídias sociais e ao pagamento de valores a título de danos morais”, diz a empresa em nota.
No chamado reembolso assistido, as clínicas solicitam aos pacientes que entreguem o login e a senha de acesso de seus aplicativos do plano de saúde com o pretexto de ajudá-los no processo. Quando isso acontece, os fraudadores podem usar os dados do paciente para abrir contas bancárias falsas e solicitar reembolsos de procedimentos não realizados, apenas para extrair dinheiro do plano de saúde, segundo Cassio Ide Alves, superintendente-médico da Abramge.
Além de solicitar ao Google que faça uma limpa nos resultados de busca para retirar esse tipo de conteúdo, as operadoras pedem para a big tech não vender mais links patrocinados que divulguem procedimentos estéticos via plano de saúde.
Um exemplo: o chamado chip da beleza —um implante hormonal que promete emagrecimento, redução de celulites e aumento na disposição— não é coberto pelos planos, mas a Abramge encontrou anúncios que oferecem o tratamento indicando que ele pode ser bancado pelo convênio.
A reportagem da Folha testou buscas com termos relacionados à realização de tratamentos estéticos pagos pelo convênio, como a expressão “botox pelo plano de saúde”. Na maioria dos casos, o resultado da pesquisa no Google já destaca que a prática pode ser ilegal e não havia links patrocinados.
Procurada pela reportagem, a Meta respondeu que não permite atividades fraudulentas ou quaisquer atividades que violem seus padrões. A empresa também diz que recomenda às pessoas denunciar perfis e anúncios que possam violar as políticas da plataforma.
O Google ressalta suas políticas que delimitam a forma como as pessoas e empresas podem anunciar produtos por meio do Google Ads e diz que age imediatamente quando identifica violação às políticas de uso. Segundo a companhia, quando não há elementos suficientes para identificar se houve uma violação, cabe à Justiça determinar a remoção do conteúdo, de acordo com os termos do Marco Civil da Internet.
O Marco Civil, no entanto, está sendo questionado por ações no STF (Supremo Tribunal Federal). O tema seria julgado em maio, mas a sessão foi adiada e deve ficar para o segundo semestre.
O pedido da Abramge pode vir a ser atendido se os conteúdos caracterizarem violação dos termos de uso e das políticas das plataformas, mas não há obrigatoriedade de retirada, segundo o advogado André Giacchetta, sócio da área de tecnologia do escritório Pinheiro Neto.
“A remoção só é obrigatória a partir do momento em que o conteúdo for avaliado, e tido como realmente ilícito ou fraudulento, por um juiz com uma ordem determinando a retirada”, afirma.
Nem todos os conteúdos denunciados pela Abramge apresentam golpes explícitos, o que deve dificultar o reconhecimento pelas plataformas.
O problema é que parte dos serviços maquiados pelas fraudes pode envolver procedimentos cobertos pelos planos. É difícil identificar o golpe se uma clínica declarar que realiza um exame de sangue para medir colesterol, mas na verdade usa os dados para ajudar a montar uma avaliação física e um treinamento esportivo.
Alguns produtos utilizados para estética podem ter uso médico, como o botox, o que ajuda os fraudadores a ocultar a prática. A toxina, mais conhecida pela função de alisar rugas, também pode ser receitada para tratar problemas como enxaqueca e bruxismo.
A clínica Bella Brazil, por exemplo, disse que o anúncio nas redes mencionando “botox sem custo pelo convênio” se referia apenas ao uso para fins médicos, e não estéticos. A clínica Be Free não respondeu ao contato da reportagem.
Para Ivar Hartmann, pesquisador de direito e tecnologia no Insper, o pedido dos planos de saúde pode esbarrar no direito à liberdade de expressão e acabar prejudicando os clientes.
“É impossível estabelecer um sistema para atender o que os planos pedem sem que as manifestações que não sejam sobre fraude acabem removidas também, como um efeito colateral”, diz.
“Em muitas situações, a pessoa que paga o plano está em desvantagem em relação às informações. O plano sabe tudo, mas a pessoa não, e acaba subutilizando. O consumidor merece receber o máximo possível de informações, e isso não interessa aos planos”, afirma Hartmann.
O pesquisador ressalva que o setor de planos de saúde não é o único que pede restrições em conteúdos na internet. Outros segmentos, empresas, ONGs e órgãos públicos que têm demandas semelhantes esbarram na dificuldade das big techs de criar filtros específicos porque isso exigiria mais gastos e poderia gerar questionamentos sobre a liberdade de expressão.
É fácil encontrar nas buscas do Google dicas sobre roubo de dados de cartão de crédito ou clonagem de conta de WhatsApp, por exemplo.
Um dos poucos casos de sucesso no controle de conteúdo foi obtido por grandes empresas de mídia, em relação a direitos autorais. Há sistemas que detectam o uso indevido de músicas ou trechos de vídeos e filmes, que muitas vezes já barram conteúdos vetados na hora da publicação.